Capítulo 19 da série 'histórias que eu ouço na clínica'.
ATENÇÃO: a história a seguir possui gatilhos.
A menina Victória Ramos (nome fictício), de 19 anos, teve uma infância bastante traumática. Os pais dela, Silvana e Acácio (nomes fictícios), trabalhavam fora durante todo o dia e só voltavam para casa no final da tarde. Nesse tempo em que Victória era deixada sozinha pelos pais, ela fazia companhia para as irmãs mais velhas, Rafaela, hoje com 25 anos, e Manuela, de 20.
Apesar de estar com outras duas crianças em casa, ela se sentia sozinha. Na maior parte do tempo não conseguia brincar, porque sempre estava fazendo os serviços domésticos que era obrigada pelas irmãs.
Aos cinco anos de idade, Victória costumava limpar a casa, fazer comida, e outras coisas que para a idade dela não eram basicamente proibidas. As tarefas eram dadas a ela por Rafaela e Manuela quando os pais saiam para trabalhar.
Enquanto a criança fazia o serviço que era obrigada, as irmãs mais velhas se ocupavam com os desenhos que passavam na televisão.
Uma pequena cicatriz na barriga dela mostra um pouco do resultado do “trabalho escravo” que foi obrigada a prestar. Victória, em uma das tentativas de mexer uma panela com comida no fogão à lenha, acabou se encostando e se queimando na chapa quente.
Nos dias em que não precisava fazer os serviços domésticos, as irmãs até que brincavam juntas. As brincadeiras não eram exatamente saudáveis, até porque Victória era ‘engolida’ pelo corpo das irmãs quando se jogavam em cima dela para realmente tentar machucá-la.
Gorda, baleia, feiosa. Esses eram alguns dos apelidos que Victória recebia de Rafaela e Manuela. Nem de longe eram apelidos carinhosos. Elas usavam as palavras para ferir. Podiam não machucar sua pele, mais o interior, o psicológico, ficava cada vez mais doente.
Victória era pequena e não sabia como se defender. Ao invés de buscar por ajuda, chorava na esperança de amenizar a dor interna. Não resolvia o problema. Em uma das vezes que tentou falar com a mãe sobre as coisas que era obrigada a passar, Silvana dialogou com Rafaela e Manuela, no intuito de resolver o problema apenas com uma conversa amigável.
As brigas continuaram até que ela passasse dos dez anos de idade. Mas, como amava muito as irmãs apesar de tudo, resolveu não tocar mais no assunto com a mãe. O problema não havia sido resolvido mesmo...
“Hoje elas estão todas casadas e moram longe, graças a Deus.”
Com 12 anos, Victória já estava depressiva. Nessa época, Silvana havia parado de trabalhar para poder ficar mais perto das filhas. Foi nesse momento em que percebeu que alguma coisa estava errada com a filha caçula. Victória só chorava, por qualquer coisa, muitas vezes, por nada. Era uma tristeza sem fim, que podia ser notada a quilômetros de distância.
A partir daquele momento, a mãe buscou por ajuda psicológica para a filha. Era um passo à frente para uma vida mais merecida.
Com o passar do tempo, Victória se encantou por um rapaz chamado Arthur (nome fictício), que conheceu em uma rede social que já estava viciada. Ambos conversaram bastante e decidiram se encontrar para comer uma pizza. Mal sabia ela que aquele jantar seria o início para o fundo do poço que estava prestes a começar.
Por exatos 30 dias o casal permaneceu namorando. Depois disso, resolveram morar juntos e construir uma família. Foram quatro anos de muita tortura física e psicológica.
“Ele gritava muito comigo, brigava muito comigo.”
Victória passou a ser proibida de se arrumar, de sair de casa sozinha, e de olhar para outras pessoas na rua. Nem mesmo a roupa que ela escolhia para passear era permitida pelo abusador Arthur.
“Homem nenhum tem que definir a roupa que uma mulher quer usar.”
Victória recorda que os motivos para tamanha covardia do homem eram a menina ser mais nova do que ele, e não saber fazer comida e limpeza da casa direito, apesar de ter sido “escrava” das irmãs durante um bom tempo.
Mais recordações negativas assolam os pensamentos de Victória, já que não consegue esquecer de quando o amado a trancava dentro do quarto como uma forma de “castigo”. Com dez anos de diferença do marido, ela era mesmo tratada como uma criança. Fora as agressões físicas, que Victória não tem como esquecer. São feridas que grudam na alma como goma de mascar quando cai em um tapete peludo. São difíceis de tirar.
Assim como em qualquer outra residência, na casa de Victória havia uma caixa de remédios que eram usados para as situações de emergência. Ela já andava de olho naquele coquetel de comprimidos que ficavam dando bobeira ao seu redor.
Em um dia em que já estava esgotada com tamanha maldade e pressão psicológica que vinha sofrendo, tomou todos os remédios e acabou no hospital, sofrendo com três paradas cardíacas, quase indo a óbito.
A menina foi encontrada pela sogra, que morava nas proximidades, e que por coincidência foi até a casa da nora para ver se ela tinha feijão cozido para emprestar. Ela avistou Victória caída sobre a cama.
Por sorte, a jovem não sofreu com efeitos colaterais e nem ficou com sequelas da primeira tentativa de suicídio, apesar de ter ficado por vários dias internada, com a mãe e o pai bastante perturbados.
Victória não queria voltar para a casa do marido. Estava bastante abalada com tudo o que tinha acontecido. Arthur, na esperança de trazer a esposa de volta para poder manipulá-la mais um pouco, tatuou o nome de Victória no antebraço.
“'Acabou! Vai bater em outra, vai brigar com outra, vai gritar com outra...'”
Com o tempo, a jovem acabou cedendo às chantagens emocionais de Arthur. Ela ainda tinha medo dele, mas burlava o sentimento e tentava se manter firme ao lado dele. Isso, até ela sair para caminhar com o filho da irmã mais velha e voltar para casa e flagrar o marido com Rafaela na cama.
“Não sei porque ela fez isso, eu nunca fiz nada pra ela.”
Rafaela também era casada. Victória conta que o marido da irmã continuou com ela apesar de tudo e que até hoje finge não existir infidelidade por parte dela.
“Eles me diziam: não é o que você tá pensando, não é o que você tá vendo...”
Na raiva do momento, em saber que fora traída não só pelo marido, mas também pela irmã de quem sempre teve muito apresso apesar de tudo, saiu correndo até a casa da mãe que ficava algumas quadras dali.
Ao contar o que havia acontecido, Silvana foi à procura dos amantes e bateu em ambos, como uma forma de criarem juízo e se arrependerem do que haviam feito. Esgotada, Victória tomou outros comprimidos que encontrou pelos cômodos, na esperança de que a segunda tentativa de suicídio funcionasse.
Silvana encontrou a filha desfalecida e correu para pedir ajuda. A menina foi levada ao hospital e permaneceu alguns dias hospitalizada. Apesar do susto, ela sobreviveu e hoje se encontra na clínica de reabilitação, buscando por ajuda psicológica para conseguir retomar a vida que as pessoas faziam questão de estragar.
Victória está empolgada por estar na clínica. Ela diz ter conhecido uma pessoa muito especial ali dentro e busca reconstruir a vida ao lado dele quando deixar a unidade de saúde.
“Agora eu gosto de viver. Estou aqui para fazer duas pessoas felizes: meu pai e minha mãe, porque eles são meu tudo!”
>> A história que você acabou de ler faz parte de um projeto que venho desenvolvendo na Clínica de Reabilitação de Ponte Serrada e pertence a um dos pacientes da unidade.
Kiane Berté tem 27 anos e trabalha como jornalista e fotógrafa. Nas horas vagas escreve suas histórias de romance curiosas e sonha junto delas com um mundo mais encantado e cheio de amor. Sonhadora, ela vê através das páginas de um bom livro a oportunidade de viajar para onde quiser sem sair do lugar
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