Sabe aquela camiseta velha que você jura ter valor sentimental, mas que na verdade só ocupa espaço? Ou aquele ingresso de show de 1998, amarelado e inútil, que você guarda como relíquia?
Pois é. Não se trata do valor real (geralmente inexistente), mas de uma resistência irracional em se desfazer de algo que já foi seu. Esse apego, que parece inofensivo, é apenas a ponta do iceberg de uma falha de design no seu sistema operacional mental.
Uma falha que te leva a tomar decisões financeiras e pessoais questionáveis, desde pedir um preço absurdo pelo seu carro velho até se agarrar a um investimento que já morreu e esqueceu de cair.
Por que diabos é tão difícil abrir mão do que já consideramos "nosso", mesmo quando a lógica grita o contrário? Isso é o que a ciência chama de efeito dotação; um dos truques mais sorrateiros que seu cérebro usa para te manter preso ao que já devia ter ido embora faz tempo.
O experimento das canecas e o apego irracional
Imagine a cena: você está em uma sala de aula, participando de um experimento conduzido por três papas da economia comportamental: Daniel Kahneman, Jack L. Knetsch e Richard H. Thaler.
Metade dos participantes recebe uma caneca comum; um item banal, com o logo da faculdade, sem qualquer valor real além do utilitário. Essa caneca agora é sua. A outra metade dos presentes fica sem nada.
Na etapa seguinte, o pesquisador propõe uma negociação. Você e os outros que receberam a caneca devem informar o valor mínimo pelo qual estariam dispostos a vendê-la. Já o grupo que ficou de mãos vazias precisa estimar quanto pagaria por uma igual.
Se seu cérebro funcionasse como um computador (spoiler: não funciona), os preços de compra e venda deveriam ser quase iguais. É a mesma caneca, oras. Mas não é isso que acontece, nunca é. A realidade, como sempre, é mais… humana.
Os "donos" da caneca, como você, inflacionam o preço ridiculamente. Querem uma pequena fortuna para abrir mão do seu tesouro recém-adquirido. Já os compradores fazem ofertas modestas, bem abaixo do esperado.
Num dos estudos, a diferença foi descomunal: os vendedores pediam, em média, $7,12, enquanto os compradores só aceitavam pagar $2,87. Pela mesma caneca sem graça!
O que essa distorção toda revela? Que o simples fato de possuir algo, mesmo por cinco minutos, já é suficiente para o seu cérebro supervalorizar o objeto. A caneca vira "MINHA caneca", e pronto.
Percebe que não é o item que muda? É apenas a sua mente entrando em curto-circuito com a ideia de posse. Esse é o efeito dotação em ação.
Como o efeito dotação sabota suas escolhas
E não pense que essa bizarrice fica restrita a experimentos com canecas. Antes fosse! O efeito dotação é aquele amigo inconveniente que dá palpite em todas as suas decisões importantes (geralmente, para pior).
Já tentou vender um imóvel? Provavelmente você colocou um preço que só fazia sentido para você (e talvez para sua mãe) e ainda ficou indignado quando viu a avaliação fria do banco. Afinal, aquela casa tem história, tem as suas memórias. O problema é que isso não significa absolutamente nada para o comprador.
É o velho apego emocional distorcendo o preço de mercado. Daniel Kahneman e Richard Thaler mostram que esse tipo de viés leva a decisões irracionais que, somadas, custam milhões todos os dias.
Nos investimentos, o padrão se repete: você segura uma ação que só cai, porque aceitar a perda dói mais do que ver o dinheiro evaporar. Ao mesmo tempo, vende rápido demais a que está subindo, só para garantir um lucro pequeno e se sentir no controle.
Nos negócios, é o empreendedor que insiste no "projeto da vida" que já faliu três vezes, mas ele não larga o osso porque investiu tempo e alma (e dinheiro, claro).
Na vida pessoal? É a montanha de tralha inútil que você chama de "coleção", o relacionamento tóxico que você não termina porque "já investiu muito tempo", a resistência teimosa a qualquer mudança que te tire do sofá quentinho da familiaridade. É a inércia disfarçada de prudência, te impedindo de buscar algo genuinamente melhor.
A coisa é tão séria que outros estudos encontraram a mesma distorção em diferentes contextos. Ziv Carmon, professor da INSEAD, e Dan Ariely, um dos principais nomes da psicologia econômica, realizaram um experimento com estudantes universitários envolvendo ingressos para um jogo de basquete bastante disputado.
O resultado chamou atenção: quem já tinha o ingresso chegou a pedir até 14 vezes mais do que os colegas estavam dispostos a pagar por um igual. Era o mesmo evento, o mesmo assento, mas bastava ter o ingresso nas mãos para que o valor percebido disparasse.
Outro estudo, conduzido por Tanjim Hossain e John List, mostrou que as pessoas se esforçam mais para evitar a perda de um bônus que acreditam já ter conquistado do que para ganhar exatamente o mesmo valor partindo do zero. Em outras palavras, perder algo que já consideram seu dói mais do que o esforço para conquistar algo novo.
E o mais revelador: esse comportamento não é exclusividade humana. Pesquisas semelhantes observaram reações parecidas em chimpanzés e macacos-prego. Parece que essa distorção cognitiva não é só cultural, ela vem embutida no nosso sistema biológico.
Mas por que essa teimosia toda? Basicamente, porque nosso cérebro odeia perder. Mas odeia com força. A dor de perder algo é sentida de forma muito mais intensa do que o prazer de ganhar algo de valor igual.
Vender "sua" caneca (ou casa, ou ação…) é uma PERDA. E para compensar essa dor você exige um preço inflado. O comprador, por outro lado, só vê um ganho potencial, por isso oferece menos. Essa assimetria ridícula é o que emperra a vida.
Aprenda a sair do piloto automático emocional
Ok, se esse bug é tão universal e veio de fábrica, estamos ferrados? Talvez não completamente. A psicologia, essa ciência que adora cutucar nossas feridas, oferece alguns atalhos funcionais.
Um dos mais comentados nos últimos tempos é o distanciamento psicológico, conceito popularizado por Ethan Kross; autor de a "Voz na Sua Cabeça", onde ele explora como o diálogo interno desgovernado pode sabotar nossas decisões.
Kross propõe aprender a dar um passo para trás e observar a própria confusão mental com a mesma distância de quem olha um aquário. É preciso sair da ilha para ver a ilha.
Quando alguém se recusa a abrir mão de um projeto que já não faz mais sentido, você logo percebe que é teimosia, não estratégia. Mas quando o apego é seu, a clareza desaparece.
A emoção toma a frente, o esforço investido começa a pesar, e a lógica fica em segundo plano.
A técnica que Kross propõe parece simples, mas é surpreendentemente eficaz: falar consigo mesmo como se estivesse aconselhando outra pessoa. Em vez de pensar "Eu não consigo vender essa casa por menos, eu cresci aqui...", experimente perguntar: "Se fosse o João passando por isso, o que eu diria a ele?".
Aparentemente, enganar o cérebro usando a terceira pessoa ativa áreas mais racionais e menos emotivas.
Então, da próxima vez que você se sentir travado diante de algo que já perdeu o sentido, faça o exercício: "Se um amigo estivesse nessa situação, o que eu aconselharia?". Ao criar essa distância, você talvez enxergue com mais clareza aquilo que a emoção insiste em encobrir.
Outra recomendação de Kross é viajar no tempo mentalmente: "Como eu vou me sentir sobre isso daqui a um mês? E daqui a um ano?". Olhar de longe, temporalmente falando, também ajuda a diminuir o surto emocional do momento.
A escolha é sua (mas a culpa também)
Entender o efeito dotação e essas artimanhas de distanciamento não vai fazer o bug desaparecer. Ele está aí, no seu código-fonte. Mas saber que ele existe já é meio caminho andado. É como saber que o carro puxa pra direita: você não conserta o carro só por saber, mas pode compensar no volante.
E não adianta se culpar pelas decisões mal tomadas no passado. Seu cérebro distorce as coisas, e isso faz parte do jogo. A pergunta importante é: o que você pretende fazer daqui para frente?
Sempre que perceber aquela resistência em mudar, abrir mão ou seguir em frente, pare por um momento. Pergunte a si mesmo: isso tem valor real ou é só o apego tentando falar mais alto? O que meu lado mais racional diria se estivesse olhando de fora?
Não é fácil. Exige treino, exige honestidade brutal consigo mesmo. Exige autoconhecimento. Mas é a diferença entre ser um fantoche dos seus vieses ou tentar, pelo menos tentar, ser o piloto das suas próprias decisões.
Use esse conhecimento e transforme essas armadilhas em aprendizado. Ou continue aí abraçado à sua caneca velha, achando que ela vale ouro.
CEO e fundador do Grupo Redesul, ecossistema de marcas que, desde 2009, ajuda pessoas a realizarem sonhos usando o consórcio do jeito certo. Formado em Ciências Contábeis e pós-graduado em Gestão de Investimentos e Educação Financeira.
evandrocanello@redesulconsorcios.com.br